sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

RESENHA CRÍTICA – O MAL-ESTAR DA CIVILIZAÇÃO




1. Identificação da obra

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classic & Conpanhia das Letras, 2011.

2. Credenciais do autor: Freud (1856 – 1939) iniciou seus estudos em medicina aos 17 anos de idade ao ingressar na Faculdade de Medicina de Viena. Começou seus estudos na área utilizando-se do método de hipnose divulgadas por Jean-Martin Charcot, em especial para o tratamento de pacientes com histeria. Foi médico neurologista e fundador da psicanálise e entre seus ensaios mais famosos estão: O Eu e o Id; A interpretação dos sonhos; e Três ensaios sobre a sexualidade


3. Resumo da obra

            Escrito próximo aos dias que antecederam o colapso da Bolsa de Valores de Nova York (1929) e publicado pela primeira vez com o título de “Das Unbehagen In Der Kultur” em Viena no ano de 1930, nesse ensaio Freud ateve-se aos estudos sobre as origens da infelicidade, o conflito entre indivíduo e sociedade e seus diferentes aspectos na civilização. Nesta obra clássica da antropologia e sociologia, Freud constrói uma espécie de “teoria psicanalítica da política” ao mergulhar, salvaguardado por seus pensamentos, na análise da cultura e civilização de sua época e de suas relações conflituosas com a sexualidade. Fundamentado a partir dos conceitos biológicos de origem da libido e da agressividade, Freud propôs que a repressão e a sublimação dos instintos sexuais, canalizados esses para o mundo do trabalho, compõem as principais causas das doenças psíquicas de sua época.

            De modo geral, Freud aponta que as pessoas atribuem falsas medidas para si mesmas – de poder, sucesso, riqueza - e as contemplam nos outros, ao passo que subestimam os autênticos valores da vida. Valores estes encontrados em grandes homens, contudo, não reconhecidos e completamente alheios aos objetivos e ideais das multidões.

            Em um primeiro momento o autor referencia-se em uma de suas obras anteriores (O futuro de uma ilusão) e menciona a título de exemplo, como homem excepcional de sua época, Romain Rolland (1866 – 1944) – premiado com o Nobel em Literatura no ano de 1915. As observações de Rolland, quando a obra citada anteriormente, serviram de premissas para que Freud escreve-se então “O mal-estar na civilização”. Quanto a essas premissas, Freud destaca a necessidade em considerar a fonte da religiosidade a partir de um sentimento tido como “oceânico” ou “sensação de eternidade”, de acordo com as sugestões de Rolland.

            A partir desta perspectiva de sentimento oceânico, os indivíduos poderiam considerar-se religiosos mesmo que desapegados de conceitos como a fé e rejeitando toda a ilusão advinda dessa maneira de pensar. Este seria um sentimento de vinculação indissolúvel, de comunhão com todo o mundo exterior e com o caráter de uma percepção intelectual provida de certa afetividade que, embora não fosse experimentada pelo próprio Freud, também não o autorizaria a questionar seu eventual aparecimento em outros. Contudo, o que Freud coloca em questão é o fato de essa interpretação poder ser admitida como fons et origo (fonte e origem) de todas as necessidades religiosas.

            Para tanto, Freud traça uma explicação psicanalítica – genética – para essa sensação, apontando que de início nada é mais seguro do que o sentimento de nós mesmo, ou seja, do nosso Eu, e este Eu desdobra-se interiormente em uma entidade psíquica denominada Id constituindo uma relação entre o Eu e o Id. O Eu, edifica de certa forma uma fachada entre o Id e o mundo externo, mas, de acordo com a ideia de sentimento oceânico, é impossível que essa relação tenha se dado desde o princípio, ao invés disso, ela se construiu no adulto evolutivamente.

            A princípio, o bebê lactante não separa seu Eu do mundo externo, mas aprende a fazê-lo aos poucos em um exercício de construção da sua própria vida psíquica em resposta a estímulos diversos. Entre esses estímulos, o mais desejado e primário é o seio materno, que na sua falta desperta no Eu a vontade pelo objeto que está fora de seus limites e que, através dos gritos e choro, reclama seu retorno orientado pelo princípio do prazer. Nessas inevitáveis sensações de prazer/desprazer o Eu constrói suas fronteiras primitivas de Eu-de-prazer que procuram evitar as sensações de dor e desprazer, isolando-se do externo “fora” ameaçador e buscando pra si os objetos – neste caso o seio materno – que lhe são fontes de prazer.

Através da atividade de seus sentidos e ações musculares intencionais, distinguem-se o interior e o exterior e dá-se o primeiro passo para instauração do princípio da realidade que regerá o desenvolvimento futuro. Dos resquícios do estado original, onde o Eu bebê estabelecia uma íntima ligação com o mundo em torno, pode-se supor uma sobrevivência desse sentimento ainda pertencente ao Eu que se fez adulto. O passado pode ficar conservado na vida psíquica, em maior ou menor grau de concentração, e não tem necessariamente que ser destruído.

            Nesta altura, Freud se pergunta: mas que direito tem esse sentimento de ser visto como a fonte das necessidades religiosas? Esse tipo de direito só pode ser adquirido por algum tipo de sentimento que expresse uma forte necessidade vital e só pode ser conservado na vida adulta por um medo perante o superior poder do destino. O sentimento oceânico, de estado conjunto ao universo, identifica-se como uma forma de consolo religioso que procura negar os perigos e ameaças do mundo externo. É doloroso para Freud, no entanto, pensar que a grande maioria da humanidade nunca se colocará a par ou acima desta concepção de vida. O homem comum entende a religião de modo infantil, como um sistema de doutrinas e promessas satisfatórias que lhe garantem guardar seus dias das desventuras do destino e que compensarão suas possíveis frustrações em outra existência.

            No final desta argumentação, Freud cita uma de suas grandes influências, Johann Wolfgang von Goethe (apud Freud, 2011): “Quem tem ciência e arte,/ tem também religião;/ quem essas duas não tem,/ esse tenha religião!”.

Neste ponto, Freud aponta a oposição feita pelo escritor entre a religião e ao que considera as duas maiores realizações do ser humano: a ciência e a arte. A partir desse pensamento começa a formar uma linha de raciocínio que procure “construções auxiliares” na intenção de hipoteticamente privar o homem comum de sua religião. Essas “construções auxiliares” seriam então suportes para enfrentar as intempéries da vida e esse meio particular poderiam se dividir, talvez, em três vias: a da poderosa diversão; das gratificações substitutivas; e das substâncias inebriantes. Contudo, no que concerne a questão da finalidade da vida humana, Freud não procura estabelecer resposta satisfatória e conclui que a resposta à questão existe em função do sistema religioso e que ironicamente só este poderia querer sanar tal problemática, passando assim para questões menos ambiciosas:

O que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção da vida, o que pedem eles da vida e desejam alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes (FREUD, p. 19, 2011).


            Esta busca pela felicidade desdobra-se em duas direções: uma meta positiva que compete à vivência de fortes sensações de prazer; e uma meta negativa que procura a ausência de dores e desprazeres. Retorna-se aqui ao programa do princípio do prazer, que é o que estabeleceria a finalidade própria da vida.  No entanto, Freud acredita que esse programa encontra-se em desacordo com o mundo inteiro, tanto dentro de uma perspectiva microcósmica tanto quanto em uma perspectiva macrocósmica. Ou seja, a possibilidade de que o homem ser feliz não está inscrita no plano da “Criação” e naturalmente é possível apenas como fenômeno episódico, de modo contrário, a infelicidade é bem mais comum de se experimentar e decorre principalmente de três maneiras: do próprio corpo; do mundo externo; e da relação com outros seres humanos.

            Dentro dessa perspectiva, o princípio do prazer converte-se de modo mais modesto ao princípio da realidade sob as rédeas do mundo externo onde a felicidade dá-se mais na fuga do desprazer e da desgraça deixando em segundo plano a busca e conquista do prazer.

Essa incessante procura dos seres humanos por um caminho da felicidade trilhou as mais diversas rotas e foram recomendadas as mais diferentes soluções a esta questão. Dos métodos, embora se reconheça a incompletude de toda investigação neste âmbito, podem ser destacados: o hedonismo que procura satisfazer de forma irrestrita suas necessidades, lançando o gozo à frente da cautela; a felicidade da quietude encontrada na reclusão do asceta na medida em que esse se abstém da realidade; na submissão da natureza, através das técnicas oriundas da ciência, à vontade humana em benefício da maioria; e de modo mais “cru”, contudo o mais eficaz, pela intoxicação.

Independente dos métodos considerados, a sensação de felicidade, guiada pelo princípio do prazer, é mais potente quando é satisfeito um impulso instintual selvagem do que quando se satisfaz um impulso domesticado. Todavia, devido à impossibilidade de se constituir uma civilização onde tais impulsos possam ser consumados é preciso que o Eu iniba sua selvageria, redirecionando-a a prazeres mais amenos.

Diante desses fatos, a possibilidade que se apresenta é a do deslocamento da libido e ou uma sublimação dos instintos a fim de evitar as frustrações decorrentes de tal conduta. Os melhores resultados são conquistados quando se alcançam ganhos suficientes de prazer através das fontes de trabalho psíquico e intelectual, obstante a isto, a fraqueza desse método encontra-se em sua impossibilidade de aplicação geral, como era visível na civilização da época, onde a atividade profissional na maioria das vezes ocorria de forma forçada pela necessidade de subsistência e não pela escolha livre dos indivíduos, acarretando consequentemente graves problemas sociais devido à natural aversão humana ao trabalho indigno que o condena ao desprazer.

            A tragédia reside no fato de que não nos é permitido abandonar esse programa de ser feliz imposto pelo princípio do prazer e de impossível plenitude. Resta a ausência de conselhos válidos para todos e a necessidade de cada qual trilhar seus caminhos particulares de ser feliz. Neste ponto a constituição psíquica do indivíduo, à parte das influências externas, é determinante.

Aquele predominantemente erótico dará prioridade às relações afetivas com outras pessoas; o narcisista, inclinado à autossuficiência, buscará as satisfações principais em seus eventos psíquicos internos; o homem de ação não largará o mundo externo, no qual pode testar sua força (FREUD, p. 28, 2011).

Não há também dentro dessa ótica certeza de êxito ao se adotar determinadas características. Do contrário, a adoção de quaisquer das técnicas de vida, de modo singular, pode antes representar perigo na medida em que esta se apresente como inadequada. Não se deve aguardar satisfação provinda apenas de um único direcionamento. Assim como, o não ajustamento a nenhuma dessas premissas pode resultar em fuga para a doença neurótica ou desesperada tentativa de rebelião que configura a psicose.

Neste sentido pode considerar como um caso de neurose, o ser que não consegue suportar a quantia de privações que a sociedade lhe impõe em desacordo com seus ideais culturais, ou seja, contra o princípio de prazer.

Por fim, o apelo à religião - no senso comum - em última estância, mesmo transformando-se em obstáculo dentro desse processo de escolhas e adaptações, ao impor uma única via régia, livra ao menos o indivíduo de ser um neurótico solitário, configurando-se como um delírio partilhado, ou seja, uma neurose coletiva. Delírio esse, também insuficiente, pois admite que lhe reste como última possibilidade de consolo à submissão incondicional a vontades que lhes são incontroláveis e diante disso poderia ter se poupado de tantos questionamentos. Por outro lado, os avanços conquistados pela humanidade nas áreas das ciências naturais e suas aplicações para obtenção dos anseios da humanidade, não supriram as demandas de prazer almejadas. Do contrário, como indica a crítica pessimista, suas soluções seguem o modelo de “prazer barato” que na maioria das vezes só servem para sanar desprazeres que por ela mesma foram criados.

Elucidadas algumas possíveis causas de desprazer e infelicidade do homem, Freud debruça-se em um segundo momento para as questões acerca do quê seria a civilização em sua essência, cujo valor da felicidade é tão exaltado e simultaneamente posto em dúvida.

A palavra civilização designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulação dos vínculos dos homens entre si (FREUD, p. 34, 2011).

De início, Freud parte de uma breve definição de cultura, “todas as atividades e valores que são úteis para o ser humano, colocando a terra a seu serviço” (FREUD, p. 34, 2011) e considera como os primeiros atos culturais da humanidade o uso de instrumentos, o domínio do fogo e a construção de moradias. A humanidade, portadora desses poderosos patrimônios culturais, paralelamente formulou suas explicações mitológicas e idealizou concepções relativas à onipotência e onisciência - frutos de seus desejos inatingíveis - as quais atribuiu aos seus deuses. Os deuses então se configuraram como ideais culturais e na medida em que esta civilização aproximava-se de tais ideais, ao mesmo tempo se confundia a eles, a ponto de tornar-se ela própria, em parte, quase o seu próprio deus. No entanto, resta ao fato desses semideuses ainda assim não se sentirem feliz com tal semelhança.

Outro traço relevante que caracteriza a civilização é o estimado valor atribuído ao cultivo das atividades psíquicas elevadas tais como o desenvolvimento de sistemas religiosos, filosóficos, intelectuais, científicos e artísticos. Não obstante a isso, valores como a beleza, limpeza e ordem são de nítida importância dentro das exigências culturais comuns. Por último, e não menos importante, as relações sociais e suas formas de regulação também tem merecido destaque para a conformação de um modelo sustentável de civilização. Neste sentido, exigências como a constituição de direitos em defesa dos interesses de uma maioria, que se estabeleçam através de um conceito de justiça, e que garantam uma ordem legal são aconselháveis para a manutenção da vida em sociedade.

Nota-se aqui, que a liberdade individual não é pressuposto básico da cultura, do contrário, ela era maior em tempos anteriores a civilização, contudo era também inútil devido ao fato de o indivíduo pouco poder fazer para defendê-la. Como proposto por Freud em obra anterior - Totem e tabu - é na vitória sobre o pai que os filhos descobrem a força da associação na luta contra um indivíduo solitário. Daí decorre a cultura totêmica e boa parte da sina da humanidade, em torno dessa tarefa de encontrar um equilíbrio adequado que incorpore a lógica do princípio de prazer e satisfaça tanto as exigências individuais como aquelas de grupo a fim de preservar esse novo estado de poder. Dito de outra maneira, “o homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança” (FREUD, p. 61, 2011).

Esta escolha consequentemente não gerou somente bônus ao homem. Tivemos como ônus desta troca a supressão, a repressão ou o deslocamento da libido das metas de instintos poderosos, ou seja, por meio da sublimação os instintos tiveram que curvar-se aos meandros da civilização o que ocasionou certamente considerável “frustração cultural”.

Os impulsos instintuais selvagens inibidos em suas metas foram redirecionados para duas outras vias que despertaram satisfatória compensação econômica:

“a compulsão ao trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que no caso do homem não dispensava o objeto sexual, a mulher, e no caso da mulher não dispensava o que saíra dela mesma, a criança” (FREUD, p 46, 2011).

Nesta altura da obra, Freud aborda questões relativas ao amor genital e amor universal (franciscano), dá corrente inibição dos desejos do Id manifestos na infância, das proibições por meio de normas de convivência e da consequente frustração da vida sexual que isso gera e a qual os indivíduos neuróticos não suportam. Freud denuncia que tais proibições sancionadas ao Id infantil pela sociedade, onde este se encontra incluso, estabelecendo meios uniformes de exercer o sentimento de amor e ignorando as desiguais constituições sexuais inatas de cada ser humano, acarretam grande prejuízo ao homem civilizado e apresentam-se como um processo contrário a evolução e a finalidade da vida.

Adiante, Freud aponta a necessidade de se reconhecer que não só de instintos do Eros e de ávido amor o homem é feito, mas também de severos instintos de morte e destruição. A partir de então, elabora uma crítica à sociedade de sua época, impressionado com os horrores e infelicidades que viveu e observou durante os períodos de guerra e pós-guerra. Retorna ao pensamento de Hobbes (apud Freud, p. 57, 2011) em uma de suas máximas, “Homo homini lupo” e considera que mesmo estando os indivíduos aptos a ligarem-se pelo amor, é condição sine ne qua non que existam para isso outros indivíduos marginalizados desse processo aos quais pode-se lançar a destruição e a agressividade instintual, frutos do “narcisismo das pequenas diferenças” e  dos impulsos de morte (Thanatos). Eros e Thanatos, juntos partilham o domínio do mundo.

Após essas importantes colocações, Freud questiona-se a respeito das relações que a cultura poderia estabelecer para lidar com o problema da agressividade - “De que meio se vale a cultura para inibir, tornar inofensiva, talvez eliminar a agressividade que a defronta?” (FREUD, p. 69, 2011) - e o que aconteceria no caso desse impulso instintivo não poder ser externalizado.

De acordo com Freud, a agressividade tomaria o caminho de volta e acabaria por sua vez sendo internalizada e dirigida contra o próprio Eu, transformando uma parte do Eu em oposição ao próprio Eu, na forma de Super-eu.

À tensão entre o rigoroso Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição. A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada (FREUD, p. 69, 2011).

Seguindo por essa premissa, a consciência de culpa é uma resposta do Super-eu ao Eu quando este indivíduo sabe-se pensando ou fazendo algo “mau” e este “mau” por sua vez é um comportamento reprimido pelo medo da perda do amor do próximo, amor “social”, e/ou do castigo. Assim sendo, o que impede esses impulsos reprimidos de se externalizarem são, o medo depositado na figura externa de uma autoridade social superior, e o medo de por ventura ser descoberto por esta, ou o medo do próprio Super-eu que se sente culpado por seus instintos de morte.

Por fim, Freud nos deixa algumas perguntas: as culturas tornaram-se “neuróticas” devido aos esforços culturais empreendidos? Adiantaria de algo a mais elaborada análise de tal patologia social se ninguém possui autoridade suficiente para impor tal terapia de grupo? Na incessante luta entre os eternos adversários Eros e Morte, onde nas circunstâncias atuais prevalece o pessimismo, quem poderá prever qual desfecho aguarda a espécie humana?

E a Gestalt emerge: vida e obra de Frederick Perls

RESENHA CRÍTICA: E A GESTALT EMERGE

1. Identificação da obra:
Kiyan, A. M. M. E a Gestalt emerge: vida e obra de Frederick Perls. São Paulo: Altana, 2006.

2. Apresentação da obra: o livro pretende construir uma análise das articulações entre a vida e a obra de Frederick Perls. Diante desse objetivo, a autora procura estabelecer uma inter-relação entre os fatos biográficos, suas consequências para a construção da Gestalt-terapia e a obra em si produzida por Perls, levando em consideração seus desdobramentos no contexto histórico em que se encontrava inserido.

3. Descrição estrutural: a obra divide-se em seis partes. Na primeira, a pesquisa, a autora pontua as questões metodológicas que levou em consideração para constituição da obra e principais referências utilizadas. A segunda e terceira parte trata objetivamente sobre a vida de Perls e a História, no sentido de estabelecer um panorama geral sobre a vida e o contexto em que Perls viveu. Na quarta parte encontram-se os pressupostos teóricos e filosóficos que exerceram influência no pensamento e obra de Fritz Perls, bem como suas experiências pessoais. A penúltima parte, a Gestalt-terapia, diz respeito à abordagem psicoterapêutica em si, trabalhando os conceitos centrais e o processo psicoterapêutico. Por último, a autora comenta sobre a configuração da obra de forma sintética, procurando integrar o “todo” apresentado.

4. Descrição do conteúdo:
Como ponto de partida, Kiyan se utiliza da cronologia de Ginger que didaticamente subdivide a biografia de Perls em sete períodos definidos conforme as localizações geográficas predominantes durante a sua vida. Cada período é constituído de duas partes: o mundo e Perls. O conteúdo revela a vida conturbada de um homem que viveu à margem da sociedade e à frente de seu tempo.
            Em resumo, Fritz Perls foi um psicanalista dissidente que concebeu uma abordagem que se opõe a psicanálise, basicamente por uma decepção pessoal e por diferenças básicas na concepção do modelo de homem inserido no bojo da teoria que passou a criticar. Ou ainda, foi o criador da abordagem denominada Gestalt-terapia que passou a ser conhecida a partir dos anos de 1960, devido às mudanças no contexto histórico social, as quais eram consonantes com seus pressupostos. Perls também pode ser considerado uma figura que suscitava reações contraditórias nas pessoas, sendo amado na mesma medida em que era odiado, respeitado na mesma medida em que foi desprezado. Vivendo num paradoxo constante de desdém dos valores sociais e de luta pela liberdade em contraste com uma forte necessidade de exibir-se e ver a Gestalt-terapia reconhecida.
            Outra característica marcante na vida de Perls é a constante ambivalência e/ou polaridade extremada. Vivenciou duas guerras mundiais, lutou em duas guerras e cada vez ao lado de um país diferente. Conviveu com o luxo e a pobreza, levava a vida até as últimas consequências e depois se isolava e parecia não mais querer saber dela. Perambulou pelo mundo, amou profundamente e abandonou as pessoas da mesma forma. Arriscou sua vida de modo quase irracional, no entanto, sem deixar de viver em abundância.
            Adiante, Kiyan apresenta na quarta parte da obra, quais seriam os pressupostos filosóficos e bases teóricas que constituíram os fundamentos essenciais do pensamento de Fritz Perls e que colaboraram para a conformação da Gestalt-terapia. Filosoficamente, o tripé da Gestalt-terapia é constituído pelo amálgama das correntes do humanismo, existencialismo e da fenomenologia. Em paralelo ainda, a autora destaca a influência da filosofia dialógica de Buber e os princípios da Psicologia da Gestalt.
            Entretanto, Kiyan destaca que no processo de construção teórico da Gestalt-terapia, houve uma espécie de “apropriação” por parte de Perls, dos conceitos e termos primariamente concebidos em outras teorias, doutrinas e abordagens, sem, no entanto, ocorrer uma atribuição devidamente referenciada aos seus criadores. Responsabilidade esta da qual Perls se isenta considerando que independente das partes constituintes de sua abordagem, é a forma de organização do todos que resultou em algo original. Bem como, vale ressaltar também que nem todos os conceitos devidamente inseridos na Gestalt-terapia, foram elaborados por Perls. Isto se deve principalmente ao fato de haver certo descompromisso por parte de Perls em sistematizar sua abordagem, não obstante, após a sua morte, outros teóricos também elaboraram conceitos e pensamentos procurando preencher as lacunas teóricas existentes.
            Deste novo arranjo das partes nasceu então a abordagem psicoterapêutica da Gestalt-terapia, com uma visão de ser humano definida segundo a relação campo-organismo-meio, indissociável do contexto e do meio onde ele está inserido e das relações que se estabelecem a partir daí. Neste paradigma, o desenvolvimento do ser humano como processo prevalece sobre o evento e a construção é mais importante do que o resultado (prevalência do como sobre o porquê). Perls acredita que a vida só existe no “aqui e agora” e o ser humano deve procurar ao máximo ser autônomo dentro desse processo, buscando sustentar-se em si mesmo (auto-apoio) e conduzir-se conscientemente (awareness) atento aos processos de auto-regulação do próprio organismo.
            Esse processo dinâmico do organismo que tende a uma homeostase e a satisfação das necessidades, quando em pleno funcionamento, leva o indivíduo a “fechar a gestalt”. Gestalt essa que só pode ser elaborada a partir da interação do organismo com o meio. Estas necessidades à serem satisfeitas são hierarquizadas conceitualmente como figura e fundo. O fundo é toda uma gama de possibilidades latentes e a figura é a necessidade dominante que emerge e cobra sua satisfação. É nessas interações dialéticas entre campo-organismo-meio que vão se constituindo os contatos, retrações, fronteiras e assimilações. Em suma, os ciclos saudáveis ou neuróticos.
            A neurose, por sua vez, surge do não fechamento, das figuras inacabadas, do acúmulo de situações não resolvidas, cristalizando determinadas necessidades e tornando-as figuras rígidas de alta hierarquia. Em síntese a neurose se estrutura em cinco camadas: a) dos clichés, dos símbolos e gestos destituídos de sentido e vividos automaticamente; b) do desempenho, que procura mostrar ao mundo e ao outro aquilo que não somos; c) do impasse, quando o indivíduo encontra-se preso e/ou perdido em sua própria existência; d) implosiva, ou camada de morte que resulta na paralisia do organismo devido às forças em oposição; e) explosiva, onde a camada de morte se energiza, redirecionando a energia para fora da fronteira de contato. Ainda aqui à de se considerar os mecanismos neuróticos de defesa da gestalt-terapia, sendo eles: de introjeção; confluência; projeção; e retroflexão.
            Por último, Kiyan pontua acerca das técnicas da abordagem Gestalt-terapêutica, esclarecendo a importância do terapeuta em trazer o cliente ao tempo presente (agora). Aqui os pressupostos teóricos do humanismo e do existencialismo se afloram, pois independente do passado ou possibilidades de futuro, é no “agora” que o cliente deve estar, percebendo a vida como um processo em constante mudança onde todo organismo é digno de confiança e tem potencial para se transformar, adaptando-se criativamente. É função do terapeuta, fazer com que o cliente desprenda-se de generalizações e da linguagem neutra, passando a utilizar uma “linguagem do eu” onde ele adquira responsabilidade e consciência dos próprios sentimentos. Não menos importante, a perspectiva fenomenológica também influencia diretamente o processo terapêutico, através de técnicas como a da “cadeira vazia”, fazendo com que o cliente tome consciência e compreenda a sua separação e distinção subjetiva em relação ao outro (regra do eu-tu).

5. Análise de forma crítica:
Devido ao viés fortemente humanista impregnado nesta obra, postula-se que o ser humano é capaz de se transformar através de um ajustamento criativo, não estabelecendo limites para tal desenvolvimento humano e desconsiderando possíveis fatores biológicos, da própria constituição genética e epigenéticas do organismo, e fatores sócio-históricos, do tempo-espaço em que este indivíduo se insere e das relações hegemônicas de poder das quais ele se encontra sujeito. Cabe ao terapeuta, dentro desta abordagem, auxiliar o cliente no desenvolvimento de seus potenciais latentes e, numa ilusão de franca autonomia frente à realidade, fazer como que ele aceite e responsabilize-se por seus eventuais insucessos, compactuando inclusive em grande medida com os valores ideológicos de correntes neoliberais e meritocráticas.

6. Recomendações:
O livro destina-se aos interessados na vida e obra de Fritz Perls, servindo como possibilidade de introdução no estudo da abordagem Gestalt-terapêutica e na compreensão de seus fundamentos principais.

7. Identificação do autor:
Kiyan é psicoterapeuta e professora doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Tem experiência na área de Psicologia e Educação com ênfase em Relações Interpessoais, atuando principalmente nos seguintes temas: gestalt-terapia, arte, religião, identidade, inclusão, diversidade, arte-terapia, arte-educação e Frederick Perls.

8. Identificação dos resenhistas:
Os alunos(as) Ana beatriz Stange; Beatriz Milléo; Camila Menel; Dayane moraes; Gabriela Meira Troglio e Gabriel Horn Iwaya são acadêmicos do 2º ano de Psicologia da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE. 

Esta resenha foi elaborada como parte das atividades avaliativas referentes à disciplina de Psicologia da Personalidade, ministrada pela Profª Mariana Datria Schulze.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

LEITURA E COGNIÇÃO SOCIAL: 
UMA REVISÃO DA LITERATURA

THALES VIANNA COUTINHO
GABRIEL HORN IWAYA

Os benefícios da leitura para as funções cognitivas já são reconhecidos e debatidos há décadas, sendo ela considerada uma porta de entrada para o estudo da mente humana (Oatley, 2011).
Nos últimos anos, vem crescendo o número de investigações visando avaliar o impacto da leitura para a cognição social do leitor. Pelo fato deste tema ainda não ser muito explorado em língua portuguesa, optou-se por elaborar esta revisão.
Haja vista que a função da leitura de obras de ficção é simular a realidade (MAR & OATLEY, 2008), Mar (2011) sugere que ela possa aumentar a cognição social.

OBJETIVO E METODOLOGIA

O objetivo deste trabalho foi elaborar uma revisão da literatura que permitisse identificar o impacto da leitura para a cognição social dos indivíduos. Para tanto, foram utilizados os termos de busca: “Perspective Thinking”, “Theory of Mind”, “Reading”, “Story Comprehension”, “Narrative” e “Social Cognition”, na base de dados PubMed, selecionando artigos publicados entre 2008-2014.

RESULTADOS

Segundo Kidd et al. (2013) a leitura de obras de ficção permite o aumento da teoria da mente que, de acordo com Baron-Cohen (2004), é a base cognitiva da empatia.
De acordo com Bal (2013), a leitura de obras de ficção também aumenta a empatia do leitor quando a história induz uma espécie de “imersão emocional” (emotional transportation) ou que contenham personagens com os quais o leitor se identifique (CHEETHAM, 2014). Tal “imersão emocional” permite ao leitor uma tomada de perspectiva que o possibilita compreender a visão de mundo dos personagens constituintes do enredo da obra.
Adiante, scores mais elevados na avaliação de empatia foram observados em leitores assíduos de obras de ficção (DJIKIC, 2013), principalmente em indivíduos com o traço de personalidade “abertura para experiência”, obstante, entre leitores de obras de não-ficção parece haver um prejuízo social como solidão e menor suporte social (MAR, 2009).
Fong et al. (2013), aponta que a preferência por gêneros literários de romance e suspense/thriller é preditora de maiores níveis de empatia. Observou-se também que um dos mecanismos responsáveis pelo aumento desta empatia em leitores de obras de ficção é a capacidade de imaginary generation (JOHNSON, 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados apresentados permitem concluir que a importância da leitura de obras de ficção não se restringe ao desenvolvimento da memória e do vocabulário, mas também dos processos envolvidos com a cognição social. Essas evidências podem inclusive ter implicações clínicas, haja vista que determinados transtornos estão relacionados a uma redução na cognição social. Assim, o estímulo à leitura poderia ser uma estratégia complementar ao tratamento convencional desses pacientes. Além disso, esses resultados podem ser incorporados no desenvolvimento de estratégias de ensino nas escolas, faculdades e universidades, por demonstrarem um impacto positivo no desenvolvimento da cognição social e assim contribuir com a formação de indivíduos com maiores habilidades interpessoais.

“Os livros não mudam o mundo, quem muda o mundo, são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas" (QUINTANA, 1966, p.57).

REFERÊNCIAS

Bal, P. M., & Veltkamp, M. (2013). How does fiction reading influence empathy? An experimental investigation on the role of emotional transportation. PloS ONE, 8(1), e55341.
Baron-Cohen, S. (2004). Diferença essencial. Editora Objetiva.
Cheetham, M., Hänggi, J., & Jancke, L. (2014). Identifying with fictive characters: Structural brain correlates of the personality trait. Social Cognitive and Affective Neuroscience, nst179.
Djikic, M., Oatley, K., & Moldoveanu, M. C. (2013). Reading other minds: Effects of literature on empathy. Scientific Study of Literature, 3(1), 28-47.
Fong, K., Mullin, J. B., & Mar, R. A. (2013). What you read matters: The role of fiction genre in predicting interpersonal sensitivity. Psychology of Aesthetics, Creativity, and the Arts, 7(4), 370.
Gazzaniga, M. S., & Heatherton, T. F. (2005). Ciência psicológica: mente, cérebro e comportamento. Artmed.
Johnson, D. R., Cushman, G. K., Borden, L. A., & McCune, M. S. (2013). Potentiating empathic growth: Generating imagery while reading fiction increases empathy and prosocial behavior. Psychology of Aesthetics, Creativity, and the Arts, 7(3), 306.
Kidd, D. C., & Castano, E. (2013). Reading literary fiction improves theory of mind. Science, 342(6156), 377-380.
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