RESENHA CRÍTICA DOS FILMES: “CIDADE DE DEUS” E “O JARDINEIRO FIEL”
1. Identificação dos filmes
CIDADE
de deus. Direção: Fernando Meirelles, Katia Lund. Roteiro: Braulio Mantovani.
Intérpretes: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Seu Jorge, Matheus
Nachtergaele, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Darlan Cunha e outros. Brasil:
Imagem Filmes, 2002. 1 filme (130 min) color.
O
JARDINEIRO fiel. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: John Le Carré.
Intérpretes: Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Danny Huston e outros. EUA: Universal
Pictures do Brasil, 2005. 1 filme (129 min) color.
2. Problema proposto:
Por
que o ser humano comete ações violentas e antiéticas?
3. Resumo dos filmes
3.1 Cidade
de deus
Cidade
de deus é um conjunto habitacional criado pelo governo municipal do Rio de
Janeiro como parte de um projeto de política pública para remoção de favelas de
outras áreas da cidade. Famílias desabrigadas que teriam sido retiradas de tais
áreas e/ou perdido suas casas em enchentes que ocorreram na época, foram
mandadas para o bairro da Cidade de deus. Cidade de deus ainda hoje se
caracteriza por ser uma das favelas cariocas de maior vulnerabilidade social e
é nesse meio que se dá a história de Buscapé.
Buscapé
é um morador nascido e criado na Cidade de deus e é através do desenrolar da
vida desse personagem que Mantovani expressa à forma com se constroem as
relações de poder nessa favela carioca. Buscapé vive preocupado em traçar um
caminho contrário ao do banditismo e na sua adolescência desenvolve uma grande
curiosidade pela fotografia. No decorrer da sua vida é descoberto e salvo pelo
seu destino devido ao seu talento em tirar fotos e acaba conseguindo seguir
carreira nessa profissão.
Cidade
de deus mostra de forma perturbadora uma face da realidade humana, extremamente
violenta, ao mesmo tempo em que denuncia a falência do estado, incapaz de
auxiliar sua população, em uma comunidade regida pelas suas próprias leis e
modos de resolução de conflitos, a margem da sociedade e da constituição brasileira.
3.2 O
jardineiro fiel
A
jornalista Tessa é assassinada no Quênia e principal suspeito do crime é um
médico (Arnold) da região que viajava com ela. Insatisfeito com as
investigações, seu marido, um diplomata britânico (Justin Quayle), começa a
procurar os culpados por conta própria e descobre um esquema conspiratório
complexo envolvendo líderes políticos e multinacionais farmacêuticas e teste de
medicamentos em seres humanos.
Os testes aconteciam simultaneamente à
distribuição de medicamentos para o tratamento de AIDS. Os indivíduos que
quisessem receber a medicação para o tratamento do HIV teriam que aceitar
também serem medicados com um uma nova droga (nevirepina), em faze de testes,
para o tratamento de tuberculose. A grande companhia farmacêutica “Three Bees”
junto com a “KDH” eram quem distribuía os medicamentos e fazia o acompanhamento
dos pacientes tratados, ocultando – é claro – os severos danos colaterais
causados pela medicação em fase de testes.
O
filme aponta as fortes relações de poder que se constroem, por traz de
interesses econômico e políticos, contrárias a preceitos morais básicos e
permeados por processos de corrupção escusos. Esse retrato trágico das
consequências de um perverso sistema neoliberal apontam o quão descartáveis são
as vidas humanas frente à lógica capitalista global.
4.
Crítica do resenhista
O ser humano é por natureza um ser
social. Ou seja, depende fundamentalmente de suas relações interpessoais para
sobreviver. De acordo com a teoria de
necessidade de pertencer, proposta por Baumeister & Leary (1995 apud GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005)
esse comportamento desenvolveu-se por representar uma forte vantagem adaptativa
no curso da evolução da espécie humana, aumentando as chances de sobrevivência
e reprodução/transmissão de genes, mas também pode ser ele a causa das maiores
atrocidades históricas que a espécie humana já viveu.
Em paralelo com essa teoria, duas
tendências comportamentais desenvolveram-se por representarem possíveis
vantagens a curto e longo prazo, sintetizadas no binômio cooperação/egoísmo:
·
A
cooperação apresenta vantagens em
longo prazo e é fundamental para a manutenção das relações interpessoais dentro
de um grupo social.
·
O
egoísmo maximiza a busca da
realização de interesses em curto prazo e apresenta-se mais visivelmente quando
os indivíduos acreditam que os outros integrantes do grupo também estão
seguindo esse viés estratégico.
Contudo,
se todos estiverem pensando dessa forma, então pouco provavelmente este grupo
conseguiria manter-se estável por muito tempo, contrariando assim a própria
natureza humana exposta na teoria de
necessidade de pertencer o que leva a crer que os indivíduos dentro de um
grupo também desenvolveram estratégias para detecção e punição de infratores –
egoístas (GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005).
Além desse dilema social que os
indivíduos dentro do grupo enfrentam, existe mais três variáveis importantes a
serem consideradas dentro desses processos interpessoais – a conformidade às normas de grupo, a submissão e a obediência. A primeira diz respeito a normas sociais e padrões
esperados de conduta que o grupo estabelece e a predisposição dos indivíduos a
se conformarem com esses certos padrões, os reproduzindo mesmo quando
individualmente os consideraram errados em um primeiro momento. Quanto à submissão e a obediência, estudos replicados em várias partes do mundo demonstram
uma característica natural dos seres humanos em serem submissos e obedientes em
determinadas situações (FORGAS (1998); FREEDMAN & FRASER (1962); MILGRAM
(1961) apud GAZZANIGA &
HEATHERTON, 2005).
Sendo
assim, indivíduos cientes do poder de influência social podem empregar diversas
estratégias para manipular o comportamento de outros indivíduos, desde crenças
religiosas, hábitos alimentares, campanhas de marketing até grandes barbáries como a escravidão e genocídios como
o holocausto (GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005).
De
acordo com a teoria darwiniana de seleção natural os nossos genes estão programados
para adaptarem-se ao meio ou fenecerem. Isto sugere que nossos genes se
replicam de modo egoísta. Então, seria possível que os genes se
autorreplicassem sem cooperação? Absolutamente, não. Isto sugere a
possibilidade de que, naturalmente, nossos genes trabalhem de forma egoísta e
racionalizada, caricaturando-se como altruístas a fim de adquirirem benefícios
em longo prazo, mas para isso teria que ter se desenvolvido também uma forma
inconsciente de autoengano, pois, se todos os genes acreditassem-se realmente
egoístas, dificilmente haveria possibilidade de cooperação para benefícios em
longo prazo (ROSAS, 2011).
Tais
questões quanto à natureza humana, a muito vêm sendo discutidas tanto na esfera
científica como na esfera filosófica do conhecimento. Daí, só para destacar duas
figuras importantes, temos: Thomas Hobbes (1588-1679) com sua concepção de
homem terminantemente egoísta; e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que acreditava
em uma bondade original da natureza humana, expressa na figura do bom selvagem (PADOVANI & CASTAGNOLA,
1956).
Na
psicologia esta dualidade inerente à natureza humana é também presente na obra
de Sigmund Freud (2011), quando este descreve as pulsões de Eros (amor) e Thanatos (morte) que movem a vida do ser humano.
A
pulsão de Eros é regida por um princípio de prazer, um impulso selvagem
instintual (libido) para a reprodução – uma concepção fortemente influenciada
pela teoria da evolução de Darwin – que quando não se concretiza precisa ser
reprimida em sua meta, redirecionada para duas outras vias possíveis: da
compulsão pelo trabalho; e do poder do amor familiar, do homem pela mulher e da
mulher para os filhos. O mau direcionamento da libido ou sua repressão poderia
então gerar estados neuróticos individuais e/ou coletivos, consequentemente promovendo
indivíduos e sociedades doentias.
Adiante,
Freud considera a necessidade de se reconhecer que não só de instintos do Eros e de ávido amor o homem é feito,
mas também de severos instintos de morte e destruição. A partir de então,
elabora uma crítica à sociedade de sua época, impressionado com os horrores e
infelicidades que viveu e observou durante os períodos de guerra e pós-guerra.
Retorna ao pensamento de Hobbes (apud
Freud, p. 57, 2011) em uma de suas máximas, “Homo homini lupo” (o homem é o lobo do homem) e considera que mesmo
estando os indivíduos aptos a ligarem-se pelo amor, é condição sine ne qua non que existam para isso outros
indivíduos marginalizados desse processo aos quais pode-se lançar a destruição
e a agressividade instintual, frutos do “narcisismo das pequenas diferenças”
e dos impulsos de morte (Thanatos). Dessa maneira, Eros e Thanatos, juntos, partilhariam o domínio do mundo.
Passados
mais de 50 anos, a ciência psicológica ainda considera a assertiva de Freud
quanto ao princípio de prazer. O
neurocientista António Damásio (2012) nos elucida quanto ao funcionamento da
maquinaria encefálica e seu sistema
interno de preferências inerentemente predisposto a evitar a dor e procurar
o prazer, estando este provavelmente pré-sintonizado a conseguir isto no âmbito
das relações sociais. A partir daí, Damásio desenvolve a hipótese do marcador-somático,
que seriam uma espécie de sinal inconsciente e de fator emocional que nos
levaria a descartar possíveis decisões antes de estas passarem pela apreciação
racional de uma lógica dedutiva de seleção.
Em suma, os marcadores-somáticos são um caso especial
do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas
emoções e sentimentos foram ligados, pela
aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários. Quando
um marcador-somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a
combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto
um marcador-somático positivo, o resultado é um incentivo (DAMÁSIO, 2012, p.
163).
Ou
seja, evolutivamente desenvolvemos uma maquinaria encefálica fortemente
balizada por emoções que nos ajuda a escolher de forma mais rápida - com base
em registros anteriores apreendidos através dos processos de educação e
socialização – que decisões devemos tomar cotidianamente. Indivíduos com defeito
nessa função cognitiva podem demorar horas para tomar decisões relativamente
simples como agendar uma consulta médica, ponderando inúmeras consequências e
infindáveis comparações infrutíferas.
Pois
bem, mas de que maneira isso pode interferir na forma como os indivíduos irão
se comportar dentro de uma sociedade? Damásio responde está questão nos
lançando na ventura da existência. Indivíduos que tiverem sorte de serem
criados em uma cultura relativamente saudável acomodam-se, através dos processos
de educação e socialização, aos padrões tidos como aceitáveis dessa cultura,
pois temos uma maquinaria inata que facilmente se sintoniza com as prescrições
culturais de determinada sociedade a fim de garantir a sobrevivência. Da mesma
forma, o efeito de uma “cultura doentia” predominaria sobre a maquinaria normal
da razão, gerando consequências desastrosas. O que não significa que não
existam indivíduos que já nasçam com predisposições antissociais (psicopatas e
sociopatas) ou que adquiram tais predisposições devido a alguma lesão cerebral
(DAMÁSIO, 2012).
Então
com relação à pergunta: “Por que o ser humano comete ações violentas e
antiéticas?”. Estamos longe de ter uma resposta simples para esta questão.
Tanto aspectos biológicos quanto aspectos culturais podem levar a tais
comportamentos.
Entretanto,
para que não incorrermos em uma espécie de determinístico biológico ou cultural, finalizo
com uma hipótese bastante lúcida que Richard Dawkins desenvolve, a partir de
sua lógica com base em um egoísmo genético (biológico) e memético (cultural),
com relação à autonomia humana de rebelar-se contra suas condições originais.
“[...] mesmo que
olhemos para o lado escuro e assumamos que o homem é fundamentalmente egoísta,
nossa capacidade consciente de previsão - nossa capacidade de simular o futuro
na imaginação poderia nos salvar dos piores excessos egoístas dos replicadores cegos.
Pelo menos temos o equipamento mental para promover nossos interesses egoístas
a longo prazo e não simplesmente aqueles a curto prazo. [...]Temos o poder de
desafiar os genes egoístas de nosso nascimento e, se necessário, os memes
egoístas de nossa doutrinação. Podemos até discutir maneiras de cultivar e
estimular o altruísmo puro e desinteressado - o que não ocorre na Natureza e
que nunca existiu antes em toda história do mundo. Somos construídos como
máquinas gênicas e cultivados como máquinas mêmicas, mas temos o poder de nos
revoltarmos contra nossos criadores. Somente nós, na Terra, podemos nos rebelar
contra a tirania dos replicadores egoístas (p. 222, 2001).
Gabriel Horn Iwaya
Ps: a questão da autonomia, também renderia uma não menor discussão.
5. Referências
DAMÁSIO,
A. R. O erro de Descartes: emoção,
razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
DAWKINS, R. O Gene Egoísta. Belo Horizonte:
Itatiaia, 2001.
FREUD, S. O
mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classic & Companhia das
Letras, 2011.
GAZZANIGA
& HEATHERTON. Ciência Psicológica.
Porto Alegre: Artmed, 2005.
PADOVANI
& CASTAGNOLA. História da Filosofia.
São Paulo: Editora Melhoramentos, 1956.
ROSAS,
ALEJANDRO. La evolución de la moral
contractual. Ideas y Valores [online]. 2011, vol.60, n.147, pp. 209-222.
ISSN 0120-0062.
Disponível
em:
http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-00622011000300011&lng=en&nrm=iso
Acesso
em: 29/07/2013.
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