quinta-feira, 17 de outubro de 2013

RESENHA  CRÍTICA DOS FILMES: “CIDADE DE DEUS” E “O JARDINEIRO FIEL”
1. Identificação dos filmes
CIDADE de deus. Direção: Fernando Meirelles, Katia Lund. Roteiro: Braulio Mantovani. Intérpretes: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Seu Jorge, Matheus Nachtergaele, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Darlan Cunha e outros. Brasil: Imagem Filmes, 2002. 1 filme (130 min) color.
O JARDINEIRO fiel. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: John Le Carré. Intérpretes: Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Danny Huston e outros. EUA: Universal Pictures do Brasil, 2005. 1 filme (129 min) color.
2. Problema proposto:
Por que o ser humano comete ações violentas e antiéticas?
3. Resumo dos filmes
3.1 Cidade de deus
Cidade de deus é um conjunto habitacional criado pelo governo municipal do Rio de Janeiro como parte de um projeto de política pública para remoção de favelas de outras áreas da cidade. Famílias desabrigadas que teriam sido retiradas de tais áreas e/ou perdido suas casas em enchentes que ocorreram na época, foram mandadas para o bairro da Cidade de deus. Cidade de deus ainda hoje se caracteriza por ser uma das favelas cariocas de maior vulnerabilidade social e é nesse meio que se dá a história de Buscapé.
Buscapé é um morador nascido e criado na Cidade de deus e é através do desenrolar da vida desse personagem que Mantovani expressa à forma com se constroem as relações de poder nessa favela carioca. Buscapé vive preocupado em traçar um caminho contrário ao do banditismo e na sua adolescência desenvolve uma grande curiosidade pela fotografia. No decorrer da sua vida é descoberto e salvo pelo seu destino devido ao seu talento em tirar fotos e acaba conseguindo seguir carreira nessa profissão.
Cidade de deus mostra de forma perturbadora uma face da realidade humana, extremamente violenta, ao mesmo tempo em que denuncia a falência do estado, incapaz de auxiliar sua população, em uma comunidade regida pelas suas próprias leis e modos de resolução de conflitos, a margem da sociedade e da constituição brasileira.
3.2 O jardineiro fiel
A jornalista Tessa é assassinada no Quênia e principal suspeito do crime é um médico (Arnold) da região que viajava com ela. Insatisfeito com as investigações, seu marido, um diplomata britânico (Justin Quayle), começa a procurar os culpados por conta própria e descobre um esquema conspiratório complexo envolvendo líderes políticos e multinacionais farmacêuticas e teste de medicamentos em seres humanos.
 Os testes aconteciam simultaneamente à distribuição de medicamentos para o tratamento de AIDS. Os indivíduos que quisessem receber a medicação para o tratamento do HIV teriam que aceitar também serem medicados com um uma nova droga (nevirepina), em faze de testes, para o tratamento de tuberculose. A grande companhia farmacêutica “Three Bees” junto com a “KDH” eram quem distribuía os medicamentos e fazia o acompanhamento dos pacientes tratados, ocultando – é claro – os severos danos colaterais causados pela medicação em fase de testes.
O filme aponta as fortes relações de poder que se constroem, por traz de interesses econômico e políticos, contrárias a preceitos morais básicos e permeados por processos de corrupção escusos. Esse retrato trágico das consequências de um perverso sistema neoliberal apontam o quão descartáveis são as vidas humanas frente à lógica capitalista global.
 4. Crítica do resenhista
            O ser humano é por natureza um ser social. Ou seja, depende fundamentalmente de suas relações interpessoais para sobreviver. De acordo com a teoria de necessidade de pertencer, proposta por Baumeister & Leary (1995 apud GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005) esse comportamento desenvolveu-se por representar uma forte vantagem adaptativa no curso da evolução da espécie humana, aumentando as chances de sobrevivência e reprodução/transmissão de genes, mas também pode ser ele a causa das maiores atrocidades históricas que a espécie humana já viveu.
            Em paralelo com essa teoria, duas tendências comportamentais desenvolveram-se por representarem possíveis vantagens a curto e longo prazo, sintetizadas no binômio cooperação/egoísmo:
·         A cooperação apresenta vantagens em longo prazo e é fundamental para a manutenção das relações interpessoais dentro de um grupo social.
·         O egoísmo maximiza a busca da realização de interesses em curto prazo e apresenta-se mais visivelmente quando os indivíduos acreditam que os outros integrantes do grupo também estão seguindo esse viés estratégico.
Contudo, se todos estiverem pensando dessa forma, então pouco provavelmente este grupo conseguiria manter-se estável por muito tempo, contrariando assim a própria natureza humana exposta na teoria de necessidade de pertencer o que leva a crer que os indivíduos dentro de um grupo também desenvolveram estratégias para detecção e punição de infratores – egoístas (GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005).
            Além desse dilema social que os indivíduos dentro do grupo enfrentam, existe mais três variáveis importantes a serem consideradas dentro desses processos interpessoais – a conformidade às normas de grupo, a submissão e a obediência. A primeira diz respeito a normas sociais e padrões esperados de conduta que o grupo estabelece e a predisposição dos indivíduos a se conformarem com esses certos padrões, os reproduzindo mesmo quando individualmente os consideraram errados em um primeiro momento. Quanto à submissão e a obediência, estudos replicados em várias partes do mundo demonstram uma característica natural dos seres humanos em serem submissos e obedientes em determinadas situações (FORGAS (1998); FREEDMAN & FRASER (1962); MILGRAM (1961) apud GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005).
Sendo assim, indivíduos cientes do poder de influência social podem empregar diversas estratégias para manipular o comportamento de outros indivíduos, desde crenças religiosas, hábitos alimentares, campanhas de marketing até grandes barbáries como a escravidão e genocídios como o holocausto (GAZZANIGA & HEATHERTON, 2005).
De acordo com a teoria darwiniana de seleção natural os nossos genes estão programados para adaptarem-se ao meio ou fenecerem. Isto sugere que nossos genes se replicam de modo egoísta. Então, seria possível que os genes se autorreplicassem sem cooperação? Absolutamente, não. Isto sugere a possibilidade de que, naturalmente, nossos genes trabalhem de forma egoísta e racionalizada, caricaturando-se como altruístas a fim de adquirirem benefícios em longo prazo, mas para isso teria que ter se desenvolvido também uma forma inconsciente de autoengano, pois, se todos os genes acreditassem-se realmente egoístas, dificilmente haveria possibilidade de cooperação para benefícios em longo prazo (ROSAS, 2011).
Tais questões quanto à natureza humana, a muito vêm sendo discutidas tanto na esfera científica como na esfera filosófica do conhecimento. Daí, só para destacar duas figuras importantes, temos: Thomas Hobbes (1588-1679) com sua concepção de homem terminantemente egoísta; e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que acreditava em uma bondade original da natureza humana, expressa na figura do bom selvagem (PADOVANI & CASTAGNOLA, 1956).
Na psicologia esta dualidade inerente à natureza humana é também presente na obra de Sigmund Freud (2011), quando este descreve as pulsões de Eros (amor) e Thanatos (morte) que movem a vida do ser humano.
A pulsão de Eros é regida por um princípio de prazer, um impulso selvagem instintual (libido) para a reprodução – uma concepção fortemente influenciada pela teoria da evolução de Darwin – que quando não se concretiza precisa ser reprimida em sua meta, redirecionada para duas outras vias possíveis: da compulsão pelo trabalho; e do poder do amor familiar, do homem pela mulher e da mulher para os filhos. O mau direcionamento da libido ou sua repressão poderia então gerar estados neuróticos individuais e/ou coletivos, consequentemente promovendo indivíduos e sociedades doentias.
Adiante, Freud considera a necessidade de se reconhecer que não só de instintos do Eros e de ávido amor o homem é feito, mas também de severos instintos de morte e destruição. A partir de então, elabora uma crítica à sociedade de sua época, impressionado com os horrores e infelicidades que viveu e observou durante os períodos de guerra e pós-guerra. Retorna ao pensamento de Hobbes (apud Freud, p. 57, 2011) em uma de suas máximas, “Homo homini lupo” (o homem é o lobo do homem) e considera que mesmo estando os indivíduos aptos a ligarem-se pelo amor, é condição sine ne qua non que existam para isso outros indivíduos marginalizados desse processo aos quais pode-se lançar a destruição e a agressividade instintual, frutos do “narcisismo das pequenas diferenças” e  dos impulsos de morte (Thanatos). Dessa maneira, Eros e Thanatos, juntos, partilhariam o domínio do mundo.
Passados mais de 50 anos, a ciência psicológica ainda considera a assertiva de Freud quanto ao princípio de prazer. O neurocientista António Damásio (2012) nos elucida quanto ao funcionamento da maquinaria encefálica e seu sistema interno de preferências inerentemente predisposto a evitar a dor e procurar o prazer, estando este provavelmente pré-sintonizado a conseguir isto no âmbito das relações sociais. A partir daí, Damásio desenvolve a hipótese do marcador-somático, que seriam uma espécie de sinal inconsciente e de fator emocional que nos levaria a descartar possíveis decisões antes de estas passarem pela apreciação racional de uma lógica dedutiva de seleção.
Em suma, os marcadores-somáticos são um caso especial do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários. Quando um marcador-somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto um marcador-somático positivo, o resultado é um incentivo (DAMÁSIO, 2012, p. 163).
Ou seja, evolutivamente desenvolvemos uma maquinaria encefálica fortemente balizada por emoções que nos ajuda a escolher de forma mais rápida - com base em registros anteriores apreendidos através dos processos de educação e socialização – que decisões devemos tomar cotidianamente. Indivíduos com defeito nessa função cognitiva podem demorar horas para tomar decisões relativamente simples como agendar uma consulta médica, ponderando inúmeras consequências e infindáveis comparações infrutíferas.
Pois bem, mas de que maneira isso pode interferir na forma como os indivíduos irão se comportar dentro de uma sociedade? Damásio responde está questão nos lançando na ventura da existência. Indivíduos que tiverem sorte de serem criados em uma cultura relativamente saudável acomodam-se, através dos processos de educação e socialização, aos padrões tidos como aceitáveis dessa cultura, pois temos uma maquinaria inata que facilmente se sintoniza com as prescrições culturais de determinada sociedade a fim de garantir a sobrevivência. Da mesma forma, o efeito de uma “cultura doentia” predominaria sobre a maquinaria normal da razão, gerando consequências desastrosas. O que não significa que não existam indivíduos que já nasçam com predisposições antissociais (psicopatas e sociopatas) ou que adquiram tais predisposições devido a alguma lesão cerebral (DAMÁSIO, 2012).
Então com relação à pergunta: “Por que o ser humano comete ações violentas e antiéticas?”. Estamos longe de ter uma resposta simples para esta questão. Tanto aspectos biológicos quanto aspectos culturais podem levar a tais comportamentos.
Entretanto, para que não incorrermos em uma espécie de determinístico biológico ou cultural, finalizo com uma hipótese bastante lúcida que Richard Dawkins desenvolve, a partir de sua lógica com base em um egoísmo genético (biológico) e memético (cultural), com relação à autonomia humana de rebelar-se contra suas condições originais.
“[...] mesmo que olhemos para o lado escuro e assumamos que o homem é fundamentalmente egoísta, nossa capacidade consciente de previsão - nossa capacidade de simular o futuro na imaginação poderia nos salvar dos piores excessos egoístas dos replicadores cegos. Pelo menos temos o equipamento mental para promover nossos interesses egoístas a longo prazo e não simplesmente aqueles a curto prazo. [...]Temos o poder de desafiar os genes egoístas de nosso nascimento e, se necessário, os memes egoístas de nossa doutrinação. Podemos até discutir maneiras de cultivar e estimular o altruísmo puro e desinteressado - o que não ocorre na Natureza e que nunca existiu antes em toda história do mundo. Somos construídos como máquinas gênicas e cultivados como máquinas mêmicas, mas temos o poder de nos revoltarmos contra nossos criadores. Somente nós, na Terra, podemos nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas (p. 222, 2001).
Gabriel Horn Iwaya

Ps: a questão da autonomia, também renderia uma não menor discussão.
5. Referências
DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
DAWKINS, R. O Gene Egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classic & Companhia das Letras, 2011.
GAZZANIGA & HEATHERTON. Ciência Psicológica. Porto Alegre: Artmed, 2005.
PADOVANI & CASTAGNOLA. História da Filosofia. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1956.
ROSAS, ALEJANDRO. La evolución de la moral contractual. Ideas y Valores [online]. 2011, vol.60, n.147, pp. 209-222. ISSN 0120-0062.
Disponível em:
http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-00622011000300011&lng=en&nrm=iso

Acesso em: 29/07/2013.

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